"muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía haveria de recordar aquela tarde remota em que o pai o levou a conhecer o gelo." muitos anos depois, também nós vamos recordar este tempo, este mesmo, que agora nos vemos incapazes de prender com as nossas próprias mãos. este tempo que é já história feita por nós, pelas mesmas mãos que não o conseguem segurar. tempo feio, frio, escuro e obscuro e opaco; tão opaco como brumas que se erguem como muros impenetráveis, inquebráveis, imperscrutáveis, entrelaçados por números e mais números e mais números, sem face nem alma, perdidos na sua origem, acumulados em forma de milhões e biliões e triliões de interesses; interesses triunfantes, como os porcos do Orwell, e os outros, que nos esmagam e nos estilhaçam, que nos trespassam e despedaçam, indiferentes ao fluir do sangue que jorram à sua passagem. e as nossas mãos? mudam elas o tempo ou enrugam incoscientemente, impotentes e inoperantes, contrárias à natureza que as criou, logo elas, moldadas para trabalhar e talhar o que sem elas permaneceria imutável? que fatalidade inevitável seria a imutabilidade, sem elas, as mãos; essas mãos, aquelas mãos. quais? aquelas da Ilíada e da Odisseia, essas d'Os Lusíadas e do Quixote, aquelas dos prelúdios e fugas, essas das sonatas e as dos nocturnos, as mãos que se heterenomizaram, as mãos do Pessoa, fragmentos de luz num cristal; as mãos do Zeca. do Zeca? sim, as mãos do Zeca. não era a voz? se fosse a voz como é que ele podia penetrar no meu peito e contrair o meu coração até que ele se torna tão apertado que só lhe resta explodir num grito, num clamor de justiça, uníssono com o mundo, urlando e bombeando sangue, suor e lágrimas e raiva e revolta? não, o Zeca cantava com as mãos dele, pedindo as nossas.
muitos anos depois, mesmo muitos anos depois, depois de nós, depois dos nossos depois de nós e até depois dos deles dos nossos depois de nós, vão lembrar-se deste tempo, deste tempo que de gelo não é porque fascínio não tem, mas que com ele se parece na frieza, na aspereza e na dureza com que nos queima. não pode ser de gelo este tempo porque neste tempo, não como no gelo, as partículas separam-se, quebram-se, dividem-se, dividem-nos. Onde está a "cidade | sem muros nem ameias | gente igual por dentro | gente igual por fora | onde a folha da palma | afaga a cantaria | cidade do homem | não do lobo, mas irmão | capital da alegria || braço que dormes | nos braços do rio | toma o fruto da terra | é teu a ti o deves | lança o teu desafio || homem que olhas nos olhos | que não negas | o sorriso, a palavra forte e justa | homem para quem | o nada disto custa | será que existe | lá para os lados do oriente | este rio, este rumo, esta gaivota | que outro fumo deverei seguir | na minha rota?" quando foi que deixámos de lutar pela utopia e nos entregámos à fatalidade do choque, da crise, da oportunidade, da crise que cria o choque que gera a oportunidade?
por entre este meio, navegamos nós com a incerteza, peso constante sobre os ombros e na cabeça. alteram-se, novamente, as relações de trabalho, na lengalenga da dialéctica dos detentores do aparelho produtivo e da força de trabalho, malandros uns e outros, fascistas imperialistas aqueles, marxistas grevistas estes. como diria o Zé Mário, companheiro camarada do Zeca, "somos todos, ou anti-comunistas ou anti-fascistas, estas coisas até já nem querem dizer nada, ismos para aqui, ismos para acolá" e no caminho esquecemos o único ismo que importa, o do humano. quando foi mesmo que esquecemos o caminho que percorremos, que nos esquecemos que somos gregos desde que nascemos até ao momento em que morremos e que lá pelo meio existe uma longa e duradoura catarse a que chamamos vida. esquecemos que da grécia importámos - em linguagem mercantilista, de fácil compreensão - tudo aquilo que hoje perpetuamos na Ακαδήμεια; sim, a academia. quem tornou a solidariedade um produto do situacionismo, quem transformou em objecto a mais plena das palavras, uma arma à espera de uma oportunidade para ser utilizada, em vez de praticada todos os dias? quem silenciou os deuses quando Atenas ardia e Europa assistia impávida e serena, ou correndo num frenesim para salvar os seus filhos predilectos, hiper-activos e de risco, de valor superior a qualquer cidadão, dos antigos ou dos modernos.
porque não fazemos como Ferreira Gullar, que sabia que "a cidade não está no homem | do mesmo modo que em suas | quitandas praças e ruas"? porque a ele não nos juntamos no clamor límpido do seu poema sujo "e também rastejais comigo | pelos túneis das noites clandestinas | sob o céu constelado do país | entre fulgor e lepra | debaixo de lençóis de lama e de terror | vos esgueirais comigo, mesas velhas, | armários obsoletos gavetas perfumadas de passado, | dobrais comigo as esquinas do susto | e esperais esperais | que o dia venha"? porque capitalizámos os valores e lhes atribuímos números, preços, cifras? porque não realizamos - assim mesmo, tal como no Brasil - que "o homem é um ser cultural, porque a essência dele é a cultura e os valores" e que o sentido da vida é o outro? que grilhetas tão fortes nos aprisionam que nos impedem de estender a mão fraternalmente a quem dela precisa quando a nossa mão é tudo o que de nós precisam? façamos a história que queremos que contem de nós, porque dela hoje somos parte, livres de grilhetas e prisões, sem cedências éticas e morais, sem preço nos nossos valores, seguindo o sentido da vida.
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