conceber o Diabo como um partidário do Mal e o anjo como um combatente do Bem é aceitar a demagogia dos anjos. As coisas são evidentemente mais complicadas.
os anjos são partidários, não do Bem, mas da criação divina. pelo contrário, o Diabo é aquele que recusa ao mundo divino qualquer significado racional.
o domínio do mundo, como se sabe, é partilhado por anjos e demónios. no entanto, o bem do mundo não implica que os anjos levem vantagem sobre os demónios (como eu pensava quando era criança), mas que os poderes de uns e outros estejam mais ou menos equilibrados. se no mundo há demasiado significado incontestável (o poder dos anjos), o homem sucumbe sob o seu peso. se o mundo perde todo o significado (o reino dos demónios), também não se pode viver.
as coisas inesperadamente privadas do seu suposto sentido, do lugar que lhes é atribuído na pretensa ordem das coisas (…) provocam-nos o riso. Na origem, o riso é, portanto, do domínio do Diabo. Tem algo de maléfico (as coisas revelam-se de repente diferentes daquilo por que se faziam passar) mas também contém em si uma parte de benfazejo alívio (as coisas são mais leves do que pareciam, deixam-nos viver mais livremente, cessam de nos oprimir sob a sua séria austeridade).
Milan Kundera, Livro do Riso e do Esquecimento
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