terça-feira, 13 de outubro de 2015

Portugal, vermelho esperança

Foram várias décadas a colar o PS à direita, que só ao centro não chegava. Pinceladas de cinzentismo que lhe quiseram esbater o vermelho escarlate da sua identidade. Um pragmatismo excessivo, uma impossibilidade de base histórica no entendimento à sua esquerda e forças internas levaram a que, 40 anos depois dos cravos, acordos à esquerda tenham sido sempre impossíveis. 40 anos depois do outro 25, o de novembro, estamos à beira dum acordo histórico, único, esclarecedor.

No dealbar da assinatura de um compromisso jamais registado na nossa história democrática, repetem-se as opiniões e as manipulações, quais lobos em pele de cordeiro, mascarados de conselhos amigos. De uma noite eleitoral que se antevia dura, marcada pelo irritante e inconsequente chiar das longas facas afiadas, das análise prematuras mas previamente traçadas, emergiu a esperança clara e real de, finalmente, ser alcançada uma aliança de esquerda, desavergonhada, fora do seu armário, despida de preconceitos e amarras datadas. Uma coligação pré-eleitoral, formada com o único e legítimo interesse de alcançar, de novo, a maioria suficiente para a continuação de mais austeridade nos quatro anos que aí vêm, saiu inequivocamente derrotada, afastada dessa possibilidade, objectivos gorados pela votação expressiva de quem na urna depositou a sua aspiração. E, da rejeição desses interesses, emergiu uma nova e absoluta maioria, forjada na afirmação de um caminho novo, diferente, desfasado dos trilhos austeritários do passado recente.

Ao longo deste processo, ainda em curso, e revolucionário apenas na novidade que representa, será necessário às partes definirem, aliás, clarificarem e esclarecerem, qual o caminho que pretendem trilhar. As diferenças não cessarão de emergir se a elas apenas se dedicarem os seus intervenientes, iludidos por aqueles que lhe anteveem – e lhe desejam – o fracasso. Por sobre as diferenças, urge fazer triunfar os pontos comuns. Importa respeitar compromissos internacionais e parcerias europeias estratégicas para o desenvolvimento, mas não ficar refém das imposições sancionatórias e restritivas de ação que vêm da Europa concêntrica e monocéfala; é essencial definir que o modelo de sociedade a (re)construir é, de uma vez por todas, de inclusão, que não deixa ninguém de fora nem para trás, seja por motivos de identidade de género, de sexo, de raça, de etnia, de nacionalidade, ou de condição económica; que, definido este modelo de sociedade, se procura alcançar o equilíbrio e a sustentabilidade do Estado que a regula; urge estabelecer que se garante que a escola pública voltará a ser o pilar elementar da eliminação total das desigualdades económicas e sociais, garantindo uma educação de excelência, melhor como as melhores do mundo; que aos hospitais acorrerão todos por igual, e que nesses hospitais serão tratados pelos melhores profissionais, nas melhores condições possíveis; assegurar que a justiça estará, já hoje, por ontem ser por demais tarde, à disposição de todos, e não apenas acessível a quem melhores recursos puder empenhar na defesa dos seus direitos; e é fundamental criar em Portugal, se assim entenderem os que por cá andam e por cá fazem a sua vida, um lugar de futuro, agora que precisa, também, de se tornar num lugar de retorno para os que de cá partiram.

Neste mês de outubro de 2015, sem messianismos ou ambições revolucionárias, que não todas aquelas que acompanham e formam os sonhos de um futuro melhor, outubro pode trazer o triunfo adiado da esquerda unida na governação de Portugal. E, pela primeira vez, enterrar definitivamente o espectro de medo instalado sobre o socialismo, elevando-o e conotando-o com os padrões a que sempre aspirou, de igualdade, justiça e liberdade. Que este triunfo seja, ao contrário dos agoiros que por ele pairam, a oportunidade dourada de construção de um verdadeiro estado social, protegendo aqueles que mais do estado necessitam e potenciando o desenvolvimento humano de todos aqueles que em Portugal depositarem o seu futuro. Que em outubro, o vermelho rubro possa voltar a ser sinónimo da verde esperança que o acompanha, desfraldados ambos que foram pela República.

os torna-viagem tornarão

110.000 por ano. o mito que nunca saiu da Portela. o drama que não é drama nenhum. um país de costas voltadas, dividido e quebrado. mal tratante.
"As malas do portugueses | São como os olhos das rezes | Que se mastigam três vezes | Em cada chão"

apesar de você, amanhã vai ser (de novo) outro dia

hoje é dia da República. não de uma qualquer imaginária, mas da nossa, da portuguesa. hoje, pela terceira vez, não é feriado, forma simbólica de assinalar um dia histórico, determinante para a evolução e consolidação do nosso regime democrático - porque a República é, sobretudo, sobre democracia, renovação de mandatos e a sua legitimidade. hoje, pela primeira vez, o Presidente da República não comemora a República. mas, se outra prova fosse necessária, 105 anos depois, e mesmo apesar da negritude dos 48 anos de interrupção, as eleições de ontem demonstram a sua vivacidade. e que ela sobrevive aos golpes contra ela desferidos.

os resultados de ontem constituem o triunfo de uma visão de sociedade e de estado na qual não me revejo. um estado reduzido aos seus serviços mínimos, uma sociedade injusta e desigual. elegeu-se um governo que, à semelhança do que fez nos últimos quatro anos, continuará a destruir os mecanismos de proteção social, a tentar privatizar os últimos recursos económicos do Estado e a aumentar o fosso entre ricos e pobres, jovens e seniores, empregados e desempregados, os que ficaram e os que partiram, aparentemente, até, entre o norte e o sul. ontem, como há quatro anos, a vitória veio assente em falsas promessas, em mentiras, em ocultações. amanhã, como antes, saber-se-á o que foi escondido, mesmo com o rabo de fora.

com os resultados de ontem, a lição também fica para quem com ela quiser aprender. e há uma renovação no socialismo que é necessária fazer. recentrá-lo à esquerda. e não dividir para reinar. sobretudo não dividir para reinar.

com os resultados de ontem, o dia hoje amanheceu cinzento, metáfora sublime do porvir. mas, como diz o Chico Buarque, na música que tudo cura, "Hoje [ontem] você é quem manda | Falou, tá falado | Não tem discussão | A minha gente hoje anda | Falando de lado | E olhando pro chão, viu". felizmente, "Apesar de você | Amanhã há de ser | Outro dia | Você vai ter que ver | A manhã renascer | E esbanjar poesia | Como vai se explicar | Vendo o céu clarear | De repente, impunemente | Como vai abafar | Nosso coro a cantar | Na sua frente"

avante, camarada. amanhã há de ser outro dia.


Portuguese elections: isolated event or turning point for Europe?

My first collaboration with FEPS and the Queries Magazine, in the Millenial Progressive Dialogue Initiative. Full link here.

Next Sunday the Portuguese people will vote on what can be considered as one of the most disputed parliamentary elections of the last two decades. With abstention playing a major role, since figures have consistently increased from one election to the other, recent polls, as controversial as they have been, all seem to point to a large number of undecided voters.

This election could be just another unnoticed event in yet another austerity smashed Southern European country, with no real impact on the direction of EU policies. However, this election can be a decisive turnout point in the course of action of social democratic parties and policies. So, what is turning this regular and ordinary election into such an extraordinary event?

Austerity pack

Alongside with Greece, Portugal was one of the countries most hard-hit by the strong austerity measures imposed by the troika. Over the last four years, the Portuguese government has been extremely cooperative and willing to implement the measures that the IMF, the European Commission and the ECB have set as goals for the country. What is more, several statements by Portuguese government officials, including the Prime minister, have demonstrated a strange willingness to implement even harsher policies than those asked by the troika. However, an economic assessment of these measures after four years can show a country with a higher external and public debt, same deficit in 2014 as in 2011, and a repeated failure in achieving the set out goals of public expenditure and budget deficit. On a social level, Portugal has lost over 200.000 jobs, leading to roaring unemployment figures, particularly high among the young population, which in turn caused the Portuguese population to emigrate to levels higher than those estimated during the 1960’s, under the fascist regime and colonial war. Thus, the result of these elections will clearly indicate the acceptance or rejection of austerity measures, sending a strong message for Europe to hear.

What kind of state?

Never before as in these elections, two so very different visions of State have clashed. Over the last four years, the right-wing Government made several attempts to reduce the size of the State to its minimum: cuts on public expenditure, namely in education – which has cost the country a downfall in several of the OECD PISA indicators –, on the national healthcare system – increasing the waiting list for surgeries and everyday appointments in public hospitals or decreasing the number of nurses and doctors per patient, as well as the general time for recovery at the hospital –, and on social benefits – such as unemployment, pensions or sick leave. Adding to all of this, the average salary decreased, being now more than half of the European average, leaving Portugal with a lower average salary than Spain or Greece. In this election, the Socialist Party has clearly put emphasis on defining what kind of State we want for the future, hence setting another important discussion on a European level, and a decisive one for that matter. Will Brussels continue to promote a minimalistic State even it the majority of States oppose it? Is the minimum State model capable of promoting one of Europe’s biggest achievements after WWII, that is, the reduction of inequalities between the richer and the poorer?

The future of Europe & the future of social democracy

Which Europe do we want to build? More or less integration, which kind of powers shall the institutions have and on which level of transparency? What level of scope on a national level shall European decisions have and what kind of mechanisms can national states have during a crisis? Finally, what kind of cooperation and solidarity between States should there be? During this election, the Socialist Party has been insistently defending the utter need to reinforce the cooperation ties between States in order to increase the level of solidarity in the European Union. When facing the harshest economic crisis since the Great Depression, States cannot be let alone to face such a hardship. This is also what’s at stake next Sunday, in Portugal.

On Sunday, October 4th, when the first results come out, Portugal can be the gateway for a bigger change in Europe and hopefully a sign of hope for a more just and equal Europe. The spanish elections will follow soon, setting what can be a turning point in the direction of European policies towards Southern countries, with a fairer and more inclusive and cohesive Europe being in sight.

a história do não que é um sim

Saibam as pessoas que fazem a política entender a mensagem dos gregos

Publicado no P3 | 13 Julho 2015 | Link completo aqui

Não, isto não é um texto sobre a Grécia. É um texto sobre todos nós, que somos gregos de herança. Este passado que carregamos hoje como se de um fardo se tratasse, foi outrora berço e ideal de democracia e filosofia e política e Εὐρώπη (Europa). E esta Europa, ali nascida, ali construída, ali mitificada, cresceu apesar das veias abertas e ardentes que nela pulsaram durante séculos e séculos. Esta Europa, que foi fratricida por mais de dois milénios, ergueu-se das cinzas e enterrou as diferenças para se unificar no que de mais encontrou em comum. Desses pontos comuns sobressaíram, que nem fénix, a democracia, a paz e uma identidade suficientemente forte para levar à construção do mais ambicioso projeto político jamais tentado neste nosso continente.

Hoje, na pressa mediática, na pressão constante do acontecimento que não alcança relevância suficiente para sequer se transformar na espuma dos dias, vemos as imagens que nos chegam dessa capital original da Europa, empoladas pelos comentários redutoramente maniqueístas, das filas de pessoas que aguardam um sinal que não seja o que tem marcado as suas vidas recentes. Esperam pela esperança, numa redundância que tem tanto de literal quanto tem pouco de realidade, porque a esperança tarda em aparecer.

Os sinais dessa Europa real, pautada pelo inevitável, pela retórica da ausência de alternativas, têm continuamente empurrado a Grécia para a parede mais funda de uma Caverna escura, onde a pouca luz que parece lá entrar, apenas reflete o mais horrendo dos passados que, mais que esquecer, todos pensávamos ter ultrapassado.

Para fazer frente a esse passado de cruzes entrelaçadas em fundos vermelhos que ameaça invadir o presente, e para construir o seu futuro sob os auspícios de uma luz de esperança, a Grécia rompeu com as ameaças, mesmo as mais altas e graves e profundas, e refundou-se no que de mais belo pôde um dia inventar. Acossada por vozes autoritárias, revestidas da enorme sapiência dos cargos que autocraticamente julgam exercer, a Grécia recorreu à Democracia e deu ao seu povo a hipótese de decidir o seu destino. A mensagem clara, que ecoou retumbante sobre a acrópole europeia, fez tremer as heras que parecem insistir em trepar sobre as fundações democráticas desta União. A mensagem, inequivocamente política, disse-nos que não é na ida e vinda do chicote que folgam as costas; é na solidez da fibra de quem sabe que o tempo é o pai de todos os deuses e que os deuses só protegem os audazes.

Os gregos, audazes, disseram-nos que a política são as pessoas. Saibam as pessoas que fazem a política entender a mensagem dos gregos. Se a austeridade nos tirou o chão onde julgávamos assentar, se nos levou a riqueza que mais estimámos porque resultou do nosso suor, se nos fez voltar costas aos nossos irmãos europeus e nos deu a conhecer a pior face da desconfiança e da xenofobia, aproveitemos a fibra helénica para não deixarmos que nos retirem aquilo que, ainda há bem pouco tempo lográmos recuperar. Não deixemos que a austeridade nos roube a democracia e a liberdade. Não deixemos que a austeridade nos retire Abril.

PS: este artigo foi escrito ao abrigo do acordo ortográfico de 1.100 a.C., sem o qual nunca teria sido possível utilizar uma parte considerável do vocabulário aqui vertido. Assim o saibamos preservar.

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

a vida acima das nossas possibilidades

o primeiro sem aspas. o texto que escrevi, fresquinho e acabadinho de sair no P3Aqui.

O discurso já o sabemos de cor: andámos a viver acima das nossas possibilidades. Gastámos, consumimos, exagerámos. Fizemos e acontecemos, irresponsáveis que fomos e insistimos em ser. De repente, quando demos por nós, a vida subiu na vida e pôs-se a viver acima das nossas possibilidades.

A narrativa construída encaixou que nem uma luva na Europa pós-crise do virar da década. Poupar, desinvestir, cortar, retirar, reestruturar, reorganizar, diminuir, tudo no mesmo sentido diminutivo do Estado. O Estado estava gordo, obeso, e agora tinha de fazer dieta. A prescrição médica surgiu simples, clara, de fácil compreensão: há que cortar nas gorduras. Não há outra solução, que não há dinheiro.

Dos lugares comuns mais clássicos que surgiram, emergiu o da crise e da oportunidade, originado num qualquer caracter chinês: tem sempre dois lados, e em cada crise há uma oportunidade e é preciso saber aproveitar e estar atento e tirar proveito, etc. Sem grandes chavões, e de forma bem mais sustentada que uma partilha de Facebook de autor indeterminado, Milton Friedman estruturou bem o seu pensamento no que diz respeito às oportunidades que emergem das crises. Friedman percebeu, bem cedo, que nos momentos de crise — sejam elas fruto de catástrofes naturais, como o tsunami no Sudeste Asiático, ou de uma queda de regime político, como o fim da URSS, ou na sequência de uma “guerra contra o terrorismo”, como a dos EUA pós-2001, ou, ainda, de cariz económico, como a que vivemos em 1929 e em 2008 —a generalidade da população, por se encontrar num estado de choque, está mais permeável a aceitar transformações radicais na sociedade, mesmo aquelas que a desestruturam e causam rupturas na sua unidade.

Foi assim que, enquanto ainda nos tentávamos recuperar do choque da crise e a tentávamos entender — o “sub-prime”, a especulação financeira, a falência de bancos e seguradoras, os “bailout” —, levámos com os novos mantras daquele mesmo mercado que tinha provocado a crise: esta crise não é minha, é vossa, que viveram acima das vossas possibilidades e, por isso, agora precisamos de austeridade. E a austeridade cumpriu-se: cortou-se na saúde, na educação, na justiça. Diminuíram-se as prestações sociais no apoio ao desemprego, nos abonos de família, nos rendimentos mínimos. Aumentaram-se os impostos, os do rendimento e os do consumo. E vendeu-se quase tudo do que restava, privatizando-se tudo, menos aquilo que pediu Saramago.

Depois disto tudo, gorados os objectivos iniciais propostos de consolidação orçamental, das contas públicas e da dívida pública, já mais despertos e atentos, olhámos em volta e vimos um fosso - um ainda maior do que aquele que existia – entre os mais ricos e os mais pobres. E nós, que vivemos acima das nossas possibilidades, desprovidos do que tínhamos, sem nada de novo termos recebido, demo-nos conta de que tentamos, agora, viver uma vida que está muito acima daquilo que podemos suportar. Até quando?

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

o grito claro

de escadas insubmissas
de fechaduras alerta
de chaves submersas
e roucos subterrâneos
onde a esperança enlouqueceu
de notas dissonantes
dum grito de loucura
de toda a matéria escura
sufocada e contraída
nasce o grito claro

António Ramos Rosa, Antologia Poética

Futuro de uma década


António Costa ganhou. Encerra-se um ciclo longo, de três anos, e começa, verdadeiramente, a mudança que, curiosamente, era pedida por quem era continuidade. Com este resultado, António Costa adquire a legitimidade exigida para começar - continuar - a trabalhar para enfrentar os desafios que o país necessita que sejam enfrentados. Estamos a caminho do quarto ano desta corrida desenfreada ao desmantelamento do Estado Social e a sua reconstrução - a sua concepção renovada com base nos tempos que correm - exigirá pelo menos uma década, se não mais. A confiança que lhe é depositada hoje pelos milhares - muitos milhares - de militantes e simpatizantes do PS deriva do reconhecimento inequívoco das capacidades que já deu prova possuir.
Mas, depois do dia de hoje, da massiva afluência às urnas, António Costa tem um desafio que se sobrepõe a todos os outros. Num momento de grande descrença nos partidos, na “política em geral” (seja lá que descrença for essa), a mobilização dos portugueses nesta eleição, a sua participação e adesão a esta iniciativa pioneira - pelo menos a esta escala - em Portugal, implica uma grande capacidade de compromisso com a causa mais nobre da política: a defesa do bem comum. É com esse desígnio que António Costa terá, agora, de continuar a unir o partido e a mobilizar Portugal! Ao trabalho!

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Terra de Barreirenses ou da carolice

40 anos de democracia que passaram por esta nossa terra e o Barreiro continua a ser terra de barreirenses. Perdoem-me esta redundância, evidentemente La Paliceana. Explico. Sempre fomos de duas margens, fragmentados pelo Tejo que só não é mais belo que o rio que corre na nossa aldeia porque é o rio que corre na nossa aldeia. Cidadãos pendulares, acostumados ao ir e vir balançado, ondulado, que nos leva muito para além da capital. Temos sangue alentejano, algarvio, beirão, alfacinha, suburbano, e mais um pouco daqui e dali.

É com carolice que olhamos para esta nossa terra e que nos entristecemos com cada partida; sabemos de cor os nomes de quem deixou o Barreiro e compõem o número redondo de dez mil habitantes que, daqui, já não o são. É por carolice que lutamos pelo sonho que nos disseram ser esta terra, porque o futuro foi sendo sempre adiado. Da cidade industrial que morreu, sem mitos de fénix, podia ter nascido uma outra, de olhos postos no rio, explorando a frente ribeirinha, a valer-se da inovação e criatividade das suas gentes, assente no desenvolvimento económico através da reconversão do antigo tecido fabril, a recuperar o património edificado do centro histórico da cidade ao invés da desenfreada construção “nova” que promoveu, apostando, também, na sua vida nocturna, marco tão importante na nossa memória colectiva.

Ano após ano, as oportunidades parecem fugir-nos por entre os dedos, por entre os apontamentos fugazes que nos enchem mais o ego que a esperança. Por carolice, no Barreiro, os barreirenses continuam a imperar contra a lógica reinante. Abrem novos negócios, dinamizam o espaço público, criam associações culturais e desportivas, novos festivais. Não se conformam. O Barreiro continua a ser terra de barreirenses. Dos que o sempre foram, dos que continuam a ser, dos que saíram sem nunca ter deixado de o ser e dos que um dia o serão. O Barreiro será sempre a nossa terra, mesmo quando a contemplamos do outro lado. E por carolice, como bons barreirenses que somos, dela faremos terra de sonho e de futuro.

sábado, 28 de junho de 2014

os dias normais da história

28 de abril de 1974. não havia dias normais, naqueles que se seguiram ao dia inicial inteiro e limpo. 28 de abril de 1974. de entre os dias especiais aquele sê-lo-ia um pouco mais do que os outros. Mário Soares chega a Santa Apolónia trazendo consigo de Bad Münstereifel o Partido Socialista. se Soares não tivesse chegado naquele dia, o 28 de Abril teria sido sempre um dia especial. assim, foi um dia histórico. a pedido do General Spínola, Soares torna-se Ministro dos Negócios Estrangeiros com vista ao reconhecimento do novo regime português junto da comunidade internacional. já se sabe, vem nos livros, o poder só o é quando é reconhecido como tal e tem capacidade para ser usado.

25 de abril de 1975. os dias haviam seguido especiais, em busca da normalidade. 25 de abril de 1975. um ano volvido e um dia que, para além de especial, era também histórico. era o primeiro ano, quão mais histórico poderia ser? quando as urnas fecharam, naquele dia especial e histórico e das primeiras eleições democráticas após 48 anos de obscurantismo, o Partido Socialista, que Soares havia trazido para Portugal um ano antes, tinha obtido 37,9% dos votos e eleito 116 deputados para a Assembleia Constituinte.

2 de abril e 25 de abril de 1976. os dias normalizavam-se por estes lados, numa sucessão de dias especiais. 2 de abril e 25 de abril de 1976. a Assembleia aprova a Constituição da República Portuguesa para que ela entrasse em vigor no segundo aniversário da Revolução. dias históricos, impressos na memória de uma nação que refloresceu na primavera, como os cravos fazem todos os anos. os dias seguiram normais, ou normalizaram-se.

ao longo destes anos, Portugal procurou encontrar-se com a democracia e o PS afirmou-se determinante nesta reconstrução democrática do país. por seu lado, no interior do Partido Socialista, o seu líder e fundador desempenhou sempre um papel activo de orientação ideológica e política, quer das várias lideranças - mesmo daquelas que dele se afastaram e lhe disputaram o espaço interno - quer dos militantes de base. não esteve sempre certo, como ninguém está sempre; não foi sempre consensual ou unânime, como não podem ser os homens que defendem as suas convicções; tão pouco foi sempre conveniente às diversas lideranças do partido, como não se esperava que fosse.

31 de maio de 2014. no Vimeiro, perante um partido dividido, com análises diferentes dos resultados eleitorais da semana anterior, que inferiam de análises diferentes do trabalho político de António José Seguro enquanto líder, um dia normal transforma-se num dia especial. 31 de maio de 2014. um dia normal dos muitos normais que fazem parte da vida democrática de um país, de um partido democrático, deixou de o ser. no dia anterior, Mário Soares, líder e fundador do PS, havia declarado o seu apoio a um dos candidatos à liderança do partido e considerado inevitável a convocação de um congresso extraordinário, com as respectivas eleições directas para o cargo de Secretário Geral. no dia 31 de maio de 2014, no Vimeiro, um dia mais que normal, quase banal de tão normalzinho, tornou-se um dia histórico. ignorando o passado e a tradição do partido, a actual liderança lançou o partido num enredo kafkiano e todos nós nos transformámos em Josef K. o processo começou torto e já não se vai endireitar. primeiro, tinha de ser a comissão nacional ou a maioria das federações a lançarem o processo de convocatória do congresso extraordinário e de eleições directas, já que o SG continuava seguro. depois, afinal, os estatutos, que foram alterados à margem dos próprios estatutos, num outro qualquer dia que devia ter sido normal e não foi, deixaram de dizer o que lá diziam. e aquilo que lá não dizia - melhor, aquilo que lá não podia constar por ser contra os próprios estatutos - foi aprovado como se assim tivesse sido sempre. e quem devia ter salvaguardado o partido - a sua presidente - e os estatutos - a Comissão Nacional de Jurisdição - decidiu reservar o seu lugar na história e validar aquilo que não tinha cabimento de qualquer tipo ou natureza - política, estatutária ou, até mesmo, do velho bom senso. a 31 de maio de 2014, o jogo estava a decorrer e alteraram-se as regras. pior, anunciou-se que as regras iam mudar mas que era uma das equipas que ia fazer as novas regras.

31 de maio de 2014. nesse dia que deixara de ser normal, enquanto as regras mudavam, transformava-se, também, a tradição e o respeito democrático interno no Partido Socialista. enquanto se pretendia tornar ilegítima a divergência de opiniões, choviam insinuações sobre o estado mental de Soares. Soares discordava, mais uma vez, de uma liderança do PS e manifestava-o, alertando para aqueles que considerava serem os perigos institucionais que encerrava a não convocação de eleições e do congresso, bem como a desorientação que considerava ver na actual liderança de Seguro. a 31 de maio de 2014, Soares e os militantes do PS foram desconsiderados, não com base em argumentos políticos, mas com alegações de senilidade e de maquiavelismo. no dia 31 de maio de 2014, a normalidade não imperou e aquele dia tornou-se especial. o dia 31 de maio de 2014 tornou-se especial porque entrou para a história como o dia em que se tentou eliminar o normal funcionamento institucional e democrático do PS.

como os dias não terminam e a história não pára, o dia 28 de setembro de 2014 já não pode ser um dia normal. o dia 28 de setembro, que ia ser um dia normalzinho e banal, vai ter de ser um dia especial. façamo-lo entrar na história.