terça-feira, 26 de março de 2013

sobre os cravos de março, em abril que começa

este fim de semana que passou, o de 23 de março, em Bordéus, o congresso do Parti de Gauche revestiu-se de cravos vermelhos e, na sua sala principal, soltaram a voz do Zeca. o cravo, flor emblemática de tantas revoluções, foi entregue em mãos aos congressistas como um pedaço de história, de muitas histórias, dos momentos em que a liberdade irrompeu e brotou nas cidades dos homens e das mulheres, como brotam os cravos na primavera. de todas essas histórias, uma se sobrepôs, uma que foi nosso património para se tornar no de todos, a história de um dia de abril de 74 e da sua Grândola e de como hoje não precisamos tanto de senhas, mas de revoluções.

um bocadinho antes, no início do mês, ainda antes da Primavera e, porque os cravos ainda não abriam as suas pétalas em todo o seu esplendor, inebriados por um inverno extraordinariamente austero e longo, os portugueses não aguentaram mais as portas fechadas e abriram-nas de par em par. quando saíram à rua, depois de terem deixado escancaradas as celas do quotidiano que os aprisionavam, caminharam em silêncio, quase sempre, para que, a uma só voz, pudessem libertar o que lhes estava preso na garganta. foi então que, nas nossas ruas, se ouviu Grândola, como se o Zeca estivesse ali em pessoa. e, quando as vozes se calaram, e suspenderam por momentos a sua presença, agora permanente, na rua, outras se fizeram ouvir. essas vozes, acostumadas a falar por cima de todas as outras, encandeadas pelos holofotes mediáticos e desprovidas da liberdade da palavra, fizeram questão de explicar que, da explicação, aquela em jeito de música, não tinham entendido nada.

não perceberam que não foram os vampiros, mesmo se o céu é cinzento, o astro mudo e chupam o sangue à manada; não foi a formiga no carreiro, mesmo se, à chegada de outro carreiro, se quer mudar de rumo; não foi o que faz falta, mesmo quando a corja topa da janela e o pão sabe a merda; não foi o coro dos tribunais, quando todos viram que o inocente já se abateu; nem sequer clamaram por mais cinco, mesmo quando nesta terra quem trepa o coqueiro é rei, a bucha é cada vez mais dura e a troucha já se embalou para zarpar. não foi nenhuma destas, nem nenhuma das outras. foi aquela, da vila alentejana, feita para que, se um dia tivesse de abandonar o país, ele, Zeca, encontrasse nos homens e mulheres do Alentejo a razão para voltar. foi a Grândola, Vila Morena, que ecoou nas ruas portuguesas porque, quis o destino, ela se tornasse senha de uma revolução. foi a Grândola que percorreu as nossas calçadas como galgou a terra de Madrid, Bordéus, Atenas ou Roma. foi a Grândola, que não foi uma Grandolada, nem é fenómeno mediático ou movimento organizado (e a vergonha devia cobrir de rubor as faces de quem assim a diminuiu, como cobriu a minha quando assim a ouvi chamar). e foi a Grândola porque mais nenhuma podia lançar tão alto o sentido clamor deste povo, um grito inédito desta nossa história democrática, o clamor inequívoco para que nos devolvam aquilo que nos tiraram: a nossa liberdade.


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