segunda-feira, 18 de março de 2013

sobre a raíz

nunca há só uma, pois não? raíz, quero dizer. eu tenho várias. vão crescendo em mim e brotando quando menos se esperam, envoltas num misto qualquer de saudade cigana, nómada, daqui e dali. não têm sequer assentado, talvez nem precisem, antes têm vagueado.

há cerca de um ano atrás, em Siena, no congresso dos Giovani Democratici, lembro-me de duas pessoas terem subido ao palanque para relembrar outros dois camaradas, sicilianos ambos, de quem tinham perdido o rasto, porque a eles lhes cortaram abruptamente as raízes. assim, sem mais, retirados à força de onde tinham acidentalmente nascido. levaram-nos sob protecção policial para longe da sua ilha. a "cosa nostra", que não é de mais ninguém a não ser dos próprios, considerou-os incómodos e ameaçou a sua ligação à terra e à vida. e assim partiram, sem deixar nova morada, sem poder olhar para trás, levando apenas na memória o que também lhes deu identidade, o sítio onde lhes assentaram os arraiais. o fim de linha das opções de quem se vê obrigado a preservar a sua vida no anonimato de uma nova vida é um drama sem comparação, cujas marcas não se apagam nem com a erosão do tempo. perduram como perdura toda a injustiça até que o homem e a mulher, não o tempo, se encarreguem de a eliminar. e esta, em particular, teima em persistir na história, apoiada nos ombros irredutíveis do medo.

em portugal cortam-se raízes de outra forma, mas com a mesma força implacável. empurra-se devagarinho até que elas se soltam e se esvaem. e, mesmo que o salto para esta realidade seja do tamanho dos mares que separam a Sicília deste nosso atlântico, este sentimento de perda persiste em mim, persiste em aproximar a dor de uma com a dor da outra. veio-me este sentimento de uma conversa com o Hugo, uma das muitas, como sempre, consciência que se desperta. dizia-me ele, o Hugo, que dos amigos mais próximos, foram quase uma dezena que partiram. quebraram-nas porque o peso delas os fazia vergar. e as árvores, como os homens e as mulheres, nasceram para estar direitas. esse peso, da falta de oportunidades, dos salários desproporcionais, da miséria que se incrosta no corpo faminto, do desemprego, do desespero, do desânimo, do descrédito, esse peso, dizia, é de tal forma insuportável que obriga a desfazer esperanças e a arrumá-las numa mala de viagem. os sonhos comprimem-se, bem apertadinhos, para caberem todos, ficando sempre de fora aquele que mais se almejava, o de se cumprir Portugal. desses amigos ficam as memórias e as visitas ocasionais, as dores partilhadas de uma ausência sentida todos os dias, os abraços que se apertam na esperança que durem mais, sem que se aguentem até ao próximo reencontro. raízes que se agarram desesperadamente, com a força que cresce nos dentes, que quem não se sente escorraçado não é filho de boa gente. triste dura sina de quem não se vê ter bom destino. triste duro país que devasta raízes como se de uma inevitabilidade se tratasse. triste dura sorte esta de a Grândola ecoar bem alto na voz de um povo para se depositar, do outro lado, num coração que não a sabe escutar. triste duro fado.

dos amigos do Hugo, eu sou um deles. e os abraços nunca me chegam.

Sem comentários: