terça-feira, 12 de junho de 2012

grito sufocado


demorámos muitos séculos até conseguirmos atribuir a todos aquilo que sempre foi privilégio de apenas alguns. a massificação dos direitos humanos - a sua democratização, como muitas vezes se proporciona chamar - obrigou-nos a ultrapassar os direitos divinos, os direitos reais, os direitos nobiliárquicos, os direitos feudais e a terminar com a ignorância que permitia a sua perpetuação. ultrapassámos direitos e ultrapassámos rupturas históricas, retrocessos, contra-revoluções ou contra-reformas. renascemos e depois iluminámo-nos até nos revolucionarmos - almas mecânicas industrializadas que entraram de rompante pelo século XX adentro.

por aqui, pelas nossas terras, começámos o século a fazer jorrar sangue para pôr fim aos direitos que ele continha. findou a monarquia e, com ela, triunfaram os ideais de uma república que se queria de todos, por todos e para todos. nesse período, não houve preocupação maior que não a de lutar contra o obscurantismo em que vivia mergulhado grande parte da população portuguesa, a escuridão da iliteracia, da falta de cuidados de saúde e da fome. foram dezasseis anos que tiveram o mérito de deixar germinar a ideia de que era possível uma sociedade diferente, construída por quem a constitui e não por quem tinha a sorte do destino.

e eis que, sobre a pretensão do dealbar de sentimentos nacionalistas, do retorno do messias salvador, o déspota iluminado, o ditador bom, na linguagem borgiana - o nosso pequenino, não o Nosso grande, do outro lado do Atlântico - mergulhámos, novamente, nas mais profundas trevas e num tremendo retrocesso civilizacional a que hoje se chama austeridade necessária. décadas de deliberada ignorância e solidão, de mesquinhez instituída no estado, de empobrecimento voluntário, de miséria exacerbada como sinal de orgulho lusitano, de exploração humana aquém e além mar, da carne para canhão porque Angola era nossa, de mortalidade infantil e iliteracia dignas de qualquer país abaixo do nível do mar em que se encontra o Saara, enfim, pobrezinhos mas felizes.

e, depois, florescemos para a liberdade, liderados por capitães alumiados pelo conhecimento que a nato e as américas lhes proporcionaram, condição talvez não sine qua non mas certamente determinante para a arrancada fulgurantemente democrática dos nossos militares, povo também eles, como nós, connosco. durante as décadas que se seguiram, enveredámos pelos caminhos sinuosos que nos afrontavam, procurando arrancar as raízes da ignorância, do medo, da mediocridade, da escassez de cuidados de saúde, da fome, da moral parola. criámos o sistema nacional de saúde e a escola universal - do 4º para o 6º, do 6º para o 9º e do 9º para o 12º - públicos, free of charge, que em inglês percebe-se tudo melhor por cá, hediondamente acessíveis aos filhos dos doutores e dos serventes, numa mistura escusada, que assim há menos exigência e menos qualidade, não é? esforço hercúleo para nos equipararmos às linhas hemisféricas do norte pelo qual nos pretendemos equiparar e que hoje, olhando para trás, se apelida de viver acima das possibilidades intrínsecas de cada um e de todos nós. que importância tem que a probabilidade que os valorosos guerreiros da paternidade enfrentam de ver sobreviver o seu infante à nascença seja incomparavelmente superior àquela que eles próprios terão tido que contrariar? que importa que tenhamos conseguido melhorar a qualidade dos acessos sanitários da grande generalidade da população e a sua consciência disso mesmo se não tínhamos possibilidade de o fazer? porra, nós não tínhamos dinheiro para andar a salvar vidas! à boa maneira portuguesa, pouco nos importámos com isso e foi gastar e gastar e gastar, como se nos pudéssemos dar ao luxo de salvar todas as vidas que eram precisas salvar ou dar a dignidade que todos os momentos exigiam. e, já se sabe, a ilusão da igualdade é coisa de esquerdistas radicais que a malta não é toda igual, que não temos cá dinheiro para andar a perder tempo a ensinar o b-a-ba a quem só quer é enveredar pelo caminho fácil da ladroagem.

na luta por estes ganhos civilizacionais, pela nossa transformação social, errámos muitas vezes e também destruímos o que não devíamos ter destruído. não decidimos sempre pelo bem comum, não fomos sempre democráticos nas nossas escolhas nem republicanos no impacto das nossas decisões. protestámos, gritámos, interviemos, resignámo-nos, protestámos outra vez. conseguimos, quase sempre, ao longo de trinta e tal anos, um saldo positivo na construção de uma sociedade mais justa, mais livre e mais solidária. não fomos, muitas vezes, capazes de dar continuidade ao que tinha sido feito anteriormente, nem tão pouco nos preocupámos em avaliar os impactos do passado nas ações do futuro. cada ciclo governativo era novo, cada alinhamento de protagonistas uma hipótese de renascimento, de recomeço, de renovação, de reconstrução. mantivemos a coerência na defesa das grandes opções do plano -  na saúde, na educação e na proteção social - mesmo com a aplicação prática das diferenças da argamassa teórica da ideologia.

perdemos essa coerência. perdemo-la passivamente, mesmo que não a quiséssemos entregar ao desbarato, porque nos venderam a ideia que tínhamos querido mais do que poderíamos sequer ter almejado. paulatinamente, puxaram-nos o tapete, de fininho, mês a mês, décimo quarto, décimo terceiro, cortaram-nos a rede, pequenos buracos, justificados, insignificantes até ao momento em que têm de sustentar o nosso corpo e, completamente desempossadas das suas funções vitais, nos deixam, jovens ou velhos trapezistas, cair na mais profunda miséria e desespero. e quando, na miséria, precisamos dos mais básicos e elementares cuidados, dizem-nos que a saúde não a tem e que apenas resiste ligada às máquinas, aguardando a declaração de óbito, prevista mais para ontem que para amanhã; temos doenças acima das nossas possibilidades. ou então estamos saudáveis de mais, que trabalhar quarenta e cinco anos - se formos daqueles modernos que só começam a trabalhar depois dos vinte, que dantes é que era a sério, trabalhar a partir dos dez - não é sustentável. é assim que vivemos, a querer sempre mais e mais, sempre descontentes, inconformados, a querer casa, carro e férias, desvarios pequeno-burgueses, sem nada fazermos para os merecermos, que somos preguiçosos e calões e saudosistas e melancólicos fadistas. porra, comemos acima das nossas possibilidades!

e mal não estivéssemos por estes dias, quebram-se, agora, as últimas barreiras e destroem-se os últimos pilares democráticos, ataca-se a escola, elitiza-se o ensino com o vocabulário cratino e inflaciona-se a exigência, medida pelo nível de quem não consegue atingir aquilo que não sabia que tinha de saber. restauram-se, por decreto, os valores nacionais de outrora - a roupa, oh, a roupa certa e adequada ao local - e reduzem-se conhecimentos supérfluos - a história e as ciências, que nos basta ler, escrever e contar. pensar não traz riqueza nem dinheiro de além mar, pensar só baixinho, que o dinheiro da televisão e da rádio públicas não serve para propagandear o anti-patriotismo de quem não se digna a suster o peso da nação na lapela. mergulhamos, novamente, num obscurantismo profundo, invertemos prioridades, objetivos, declaramos guerra ao excesso de alunos nas nossas escolas, responsáveis exclusivos pelo despesismo, pelo excesso de verbas gastas com o ensino. hipotecamos o futuro, hipotecamos gerações que deviam aprender a combater desde cedo a instituição nacional da cunha, da corrupção, da servidão do interesse próprio, a serem melhores que todos nós. remetemos gerações para a ignorância automata papagueada pelos arautos do neo-liberalismo, que acasalam entre si, no interior das oportunas e sólidas paredes dos colégios privados das elites, reproduzindo o conservadorismo reacionário e invadindo os corredores de poder do estado, aonde, progressivamente, só eles conseguem aceder. porra, pensamos acima das nossas possibilidades!

hoje, a rolha que nos tapava a garganta aperta-se cada vez mais e já não se vai soltando; vemos como inevitável que se concretize este país de pelintras [onde] se acha normal haver mãos desempregadas e se acha inevitável haver terras por cultivar! porra, sonhamos acima das nossas possibilidades!

hoje vamos para a rua fazer democracia?

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