terça-feira, 20 de outubro de 2009

a Grande Marcha

sobre a insustentável leveza do ser
(continuação)

a grande marcha

1.

só em 1980, através de um artigo publicado no Sunday Times, se ficou a saber em que circunstâncias morreu Iakov, o filho de Estaline. prisioneiro de guerra durante a Segunda Guerra Mundial, encontrava-se detido num campo onde também havia oficiais ingleses. as latrinas eram comuns. o filho de Estaline deixava-as sempre sujas. os ingleses não gostavam de ver as suas latrinas cheias de merda, mesmo que a merda fosse do filho daquele que era então o homem mais poderoso do universo. ralharam com ele. o filho de Estaline ficou ofendido. os oficiais ingleses voltaram a repreendê-lo e obrigaram-no a limpar as latrinas. zangou-se, discutiu com eles e agrediu-os. por fim, pediu para ser recebido pelo comandante do campo. queria que ele arbitrasse o diferendo. mas o alemão estava demasiado imbuído da sua importância para deixar-se envolver numa discussão sobre merda. o filho de Estaline não pôde suportar tal humilhação. lançando aos céus as pragas russas mais tremendas, correu em direcção ao arame farpado e electrificado que cercava o campo. atirou-se contra os fios. aí ficou suspenso o corpo que nunca mais havia de sujar as latrinas britânicas.

2.

o filho de Estaline não teve uma vida fácil. o pai engendrou-o com uma mulher que, conforme tudo indica, acabou por mandar fuzilar. o jovem Estaline era, portanto, ao mesmo tempo, filho de Deus (porque o seu pai era venerado como Deus) e maldito por ele. as pessoas temiam-no duplamente: podia prejudicá-los tanto pelo poder que ainda tinha (sempre era o filho de Estaline) como pela sua amizade (o pai podia mandar castigar os amigos em vez do filho).
maldição e privilégio, felicidade e infelicidade - nunca ninguém sentiu tanto na própria pele o ponto a que essas oposições são intermutáveis e como é estreita a margem entre os dois pólos da existência humana.
logo no princípio da guerra foi capturado pelos alemães e eis que outros prisioneiros, membros de uma nação pela qual sempre sentira uma antipatia visceral, porque lhe parecia incompreensivelmente fechada, o acusavam de ser porco. ele, que carregava às costas o drama mais sublime que possa ser concebido (ser ao mesmo tempo filho de Deus e anjo caído em desgraça), tinha agora que suportar ser julgado, e não por coisas nobres (a respeito de Deus ou dos anjos), mas por causa da merda? o drama mais nobre e o incidente mais trivial estarão assim tão vertiginosamente próximos um do outro?
vertiginosamente próximos? então a proximidade também pode causar vertigens?
claro que pode. quando o pólo norte se aproximar do pólo sul quase a ponto de o tocar, o nosso planeta desaparecerá e o homem terá à sua volta um tal vazio que ficará aturdido e cederá à sedução da queda.
se a maldição e o privilégio são uma e a mesma coisa, se não diferenças entre o nobre e o vil, se o filho de Deus pode ser julgado por causa da merda, a existência humana perde as suas dimensões e torna-se de uma leveza insustentável. então o filho de Estaline corre em direcção ao arame farpado para lançar contra ele o corpo, como se estivesse a lançá-lo para o prato de uma balança que miseravelmente subisse soerguido pela infinita leveza de um mundo sem dimensões.
o filho de Estaline deu a vida pela merda. mas morrer pela merda não é uma morte absurda. os alemães que sacrificaram a vida para aumentar o território do império para leste, os russos que morreram para que o poder do seu país se estendesse mais para ocidente, esses sim, morreram por um disparate e a sua morte não tem nem qualquer espécie de sentido nem de valor geral. em contrapartida, a morte do filho de Estaline foi a única morte metafísica no meio da estupidez universal da guerra.

(…)

5.

o debate entre aqueles que afirmam que o universo foi criado por Deus e aqueles que pensam que ninguém o criou tem como objecto algo que ultrapassa o nosso entendimento e a nossa experiência. bem mais real é a diferença entre aqueles que contestam o ser tal como foi dado ao homem (pouco importa como e por quem) e aqueles que a ele aderem sem reservas de espécie nenhuma.
todas as crenças europeias, sejam elas religiosas ou políticas, têm por detrás de si o primeiro capítulo do Génesis, do qual se infere que o mundo foi criado tal como devia ser, que o ser é bom e, por consequência, que procriar é uma coisa boa. chamemos a esta crença fundamental acordo categórico com o ser.
se, ainda recentemente, a palavra merda era substituída nos livros por três pontinhos, não era seguramente por uma questão de moral. apesar de tudo, ninguém pode pretender que a merda seja imoral! o desacordo com a merda é metafísico. o instante da defecção é a prova quotidiana do carácter inaceitável da criação. das duas, uma: ou a merda é aceitável (então porque é que se fecham na casa de banho?) ou a maneira como nos criaram é que é inadmissível.
daqui se infere que o acordo categórico com o ser tem como ideal estético um mundo onde a merda é negada e onde todos se comportam como se ela não existisse. esse ideal estético chama-se kitsch.
é uma palavra alemã que apareceu em meados do século XIX sentimental e que depois se vulgarizou em todas as línguas. mas a sua utilização frequente fê-la perder todo o valor metafísico original: o kitsch é, por essência, a negação absoluta da merda; tanto no sentido literal como no sentido figurado, o kitsch exclui do seu campo de visão tudo o que a existência humana tem de essencialmente inaceitável.

Milan Kundera, A Insustentável Leveza do Ser

(eu terminei hoje de ler esta excelente obra. mesmo que não queiram ler o livro todo, algo que eu recomendo vivamente, aconselho a que leiam a 6ª Parte - A Grande Marcha. naturalmente que lendo o livro todo tudo faz mais sentido, mas esta é uma parte absolutamente magnífica e de uma profundidade filosófica sobre a vida incomparável. a mim fascinou-me e fiquei perplexo com algumas das reflexões apresentadas neste capítulo conclusivo d' A Insustentável Leveza do Ser.)

1 comentário:

Anónimo disse...
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