sexta-feira, 20 de junho de 2014

amanhã, sempre amanhã. ou do Chico

perguntaram-me um dia, numa daquelas perguntas feitas com amizade pura, se eu fosse para uma ilha e pudesse levar só uma música qual seria. o exercício é hiperbólico mas mereceu resposta inequívoca.

mesmo que ingrata, e potencialmente injusta, esta escolha não levantou dúvidas, porque o Chico nunca foi equívoco ou ambíguo. não foi conivente ou pactuante e exilou-se do outro lado do Atlântico. foi deste lado de cá, que rejubilou de alegria e esperança quando em 1974, apesar das léguas a nos separar, nos pediu a semente esquecida nalgum canto de jardim. e nós, a partir de Trás-os-Montes, onde nasce o rio Amazonas, não esquecemos quem nos amou. e essa mesma amizade pura, aquela que me lançou na malha hiperbólica da ilha, quando eu lhe pedia novidades, dizia-me sempre que ali, na terra, estão jogando futebol, tem muito choro, muito samba e rock'n'roll. que a tarifa não tem graça e que só faltava o correio andar a isco. o que ela me queria dizer é que ali, aqui, a coisa está preta. e não se esqueceu de, no momento em que me preparava para deixar terras frias da Europa central, me lembrar que eu tinha razão em pegar esse avião e fugir assim daquele frio. lembrou-me de pedir perdão pela duração dessa temporada e pela omissão um tanto forçada. e o Chico, que um dia chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar, mandou-nos trabalhar. logo a nós, malandros por excelência, e que fomos exímios em lhe(s) ensinar a arte da malandragem. nós, que já fomos a nata da malandragem, estamos agora indefesos perante o malandro regular profissional, com o aparato de malandro oficial, candidato a malandro federal, com retrato na coluna social; com contrato, com gravata e capital, e que nunca se dá mal. o Chico, que viveu o grande amor, sambando, falou-nos da Carolina, da Bárbara, da Rita, da Geni e de seu zepelim, da Ana, que era de Amsterdam, e de todas as mulheres, até as de Atenas, para nos relembrar que, olhos nos olhos, muitos foram os homens que as amaram bem mais e melhor que ele. o Chico, que herdou nas veias a verve de Cartola, Tom, Vinicius, e Gilberto - o João e o Gil - foi, durante as últimas cinco décadas, político, cronista, trovador, amante e malandro. eu, que ontem lhe deixei passar o dia de comemoração dos seus 70 de vida, sem a prosa lírica de Caetano, mas com o mesmo grau de amor, rendo-me a ele nesta singela homenagem, que é mais para mim do que para ele, porque ele sempre foi muito mais para mim.

e a resposta maturada à pergunta hiperbolicamente acertada, foi esta, sempre esta, aquela que se pode ouvir sem parar e sem exaustão. tinha de ser esta, porque mesmo nos tempos mais escuros e mais sombrios, aqueles em que nos querem fazer viver, mesmo quando cessa toda a esperança e a opressão parece comprimir até o nascer do dia, nunca nada vai impedir o galo de cantar. mesmo nos dias mais cinzentos, como os que correm, pejados de interesses e orientados sem felicidade, quem inventou o pecado e a tristeza, vai ter a fineza de desinventar. e quando alguém tentar proibir, a água nova de brotar, a gente vai-se amar, sem parar.  tinha de ser esta, porque amanhã vai ser sempre outro dia.


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