era uma vez um lugar com um pequeno inferno e um pequeno paraíso, e as pessoas andavam de um lado para outro, e encontravam-nos, a eles, ao inferno e ao paraíso, e tomavam-nos como seus, e eles eram seus de verdade. as pessoas eram pequenas, mas faziam muito ruído. e diziam: é o meu inferno, é o meu paraíso. e não devemos malquerer às mitologias assim, porque são das pessoas, e neste assunto de pessoas, amá-las é que é bom. e então a gente ama as mitologias delas. à parte isso o lugar era execrável. as pessoas chiavam como ratos, e pegavam nas coisas e largavam-nas, e pegavam umas nas outras e largavam-se. dizia: boa tarde, boa noite. e agarravam-se, e iam para a cama umas com as outras, e acordavam. às vezes acordavam no meio da noite e agarravam-se freneticamente. tenho medo - diziam. e depois amavam-se depressa e lavavam-se, e diziam: boa noite, boa noite. isto era uma parte da vida delas, e era uma das regiões (comovedoras) da sua humanidade, e o que é humano é terrível e possui uma espécie de palpitante e ambígua beleza. e então a gente ama isto, porque a gente é humana, e amar é que é bom, e compreender, claro, etc. E no tal lugar, de manhã, as pessoas acordavam. bom dia, bom dia. e desatavam a correr. é o meu inferno, o meu paraíso, vai ser bom, vai ser horrível, está a crescer, faz-se homem. e a gente então comove-se, e apoia, e ama. está mais gordo, mais magro. e o lugar começa a ser cada vez mais um lugar, com as casas de várias cores, as árvores, e as leis, e a política. porque é preciso mudar o inferno, cheira mal, cortaram a água, as pessoas ganham pouco - e que fizeram da dignidade humana? as reivindicações são legítimas. não queremos este inferno. dêem-nos um pequeno paraíso humano. bom dia, como está? mal, obrigado. pois eu ontem estive a falar com ela, e ela disse: sou uma mulher honesta. e eu então fui para o emprego e trabalhei, e agora tenho algum dinheiro, e vou alugar uma casa decente, e o nosso filho há-de ser alguém na vida. e então a gente ama, porque isto é a verdadeira vida, palpita bestialmente ali, isto é que é a realidade, e todos juntos, e abaixo a exploração do homem pelo homem. e era intolerável. ouvimos dizer que, numa delas, o pequeno inferno começou a aumentar por dentro, e ela pôs-se silenciosa e passava os dias a olhar para as flores, até que elas secavam, e ficava somente a jarra com os caules secos e a água podre. mas o silêncio tornava-se tão impenetrável que os gritos dos outros, e a solícita ternura, e a piedade em pânico - batiam ali e resvalavam. e então a beleza florescia naquele rosto, uma beleza fria e quieta, e o rosto tinha uma luz especial que vinha de dentro como a luz do deserto, e aquilo não era humano - diziam as pessoas. temos medo. e o ruído delas caminhava para trás, e as casas amorteciam-se ao pé dos jardins, mas é preciso continuar a viver. e havia o progresso. eu tenho aqui, meus senhores, uma revolução. desejam examinar? por este lado, se fazem favor. aí à direita. muito bem. não é uma boa revolução? bem, compreende... claro é uma belíssima revolução. e é barata? uma revolução barata?! não, senhores, esta é uma verdadeira revolução. algumas vidas, alguns sacrifícios, alguns anos, algumas. um bocado cara. mas de boa qualidade, isso. e o rosto que se perdera, que possivelmente caíra do corpo e rolara debaixo das mesas, o rosto? lembras-te? como foi que ficou assim? não sei: tinha uma luz. sim, lembro-me: parecia uma flor que apodrecesse friamente. era terrível. boa noite. e ela trazia um vestido de seda branca, e nesse dia fazia dezoito anos, e estava queimada pelo sol, e era do signo da Balança, e tomou os comprimidos todos, e acabou-se. não compreendo. e julgas tu que eu compreendo? quem pode compreender? ela era a própria força, aquela irradiante virtude da alegria, aquele fulgor radical..., compreendes? sim, sim. tinha um vestido de seda, e era nova, e então acabou-se. para diante, para diante. não se deve parar. enforquem-nos, a esses malditos banqueiros. este vai ter trinta e cinco andares, será o mais alto da cidade. por pouco tempo, julgo eu. como? sim, vão construir um com trinta e seis, ali à frente. remodelemos o ensino. cantemos aquela canção que fala da flor da tília. bebamos um pouco. e o outro, o outro, o que viu Deus quando ia para o emprego?! isto, imaginem, às 8h. e 45 m. de uma tranquila manhã de março. uma partida. uma partida de Deus? boa piada. não amará Deus essas maliciosas surpresas? um pequeno Deus folgazão?! ele ficou doido. começou a gritar e a fugir. que Deus vinha atrás dele. e depois? bem, lá construíram o prédio com trinta e seis andares, e o outro ficou em segundo lugar. isto é o trabalho do homem: pedra sobre pedra. é belo. vamos amar isto? vamos, é humano, é do homem. e as crianças cresceram todas, e andavam de um lado para outro, e iam fazendo pela vida - como elas próprias diziam. e então as condições sociais? sim, melhoraram bastante. mas uma delas começou a beber, e depois o coração estoirou, e ficou apenas para os outros uma memória incómoda. parece que sim, que tinha demasiada imaginação, e levaram-na ao médico e ele disse: aguente-se, e ela não se aguentou. era uma criança. não, não, nessa altura já tinha crescido, bebia pelo menos um litro de brandy por dia. nada mau, para uma antiga criança. a verdade é que era uma criança, e não se aguentou quando o médico disse: aguente-se. e as ruas são tão tristes. precisam de mais luz. mas nesta, por exemplo, já puseram mais luz, e mesmo assim é triste. é até mais triste que as outras. estou tão triste. vamos para férias, para o pequeno paraíso. contaram-me que ele tinha uma alegria tão grande que não podia agarrar num copo: quebrava-o com a força dos dedos, com a grande força da sua alegria. era uma criatura excepcional. depois foi-se embora, e até já desconfiavam dele, e embarcou, e talvez não houvesse lugar na terra para ele. e onde está? mas era uma alegria bárbara, uma vocação terrível. partiu. e agora chove, e vamos para casa, e tomamos chá, e comemos aqueles bolos de que tu gostas tanto. e depois, e depois? ele era belo e tremendo, com aquela sua alegria, e não tinha medo, e só a vibração interior da sua alegria fazia com que os copos se quebrassem entre os dedos. foi-se embora.
Herberto Helder, Lugar, Lugares, in Os Passos em Volta
Sem comentários:
Enviar um comentário