quarta-feira, 7 de outubro de 2009

mal entendidos

sobre a ocupação soviética (!) da Checoslováquia

pequeno léxico de palavras mal entendidas (continuação)

os desfiles

em Itália ou em França, o problema é fácil de resolver. quando os pais obrigam os filhos a ir à igreja, os filhos vingam-se e inscrevem-se num partido (comunista, trotskista, maoísta, etc.). só que o pai de Sabina começou por mandá-la à igreja e a seguir, cheio de medo, obrigou-a a aderir à Juventude Comunista.
nos desfiles do 1º de Maio nunca conseguia acertar o passo e a rapariga de trás passava o tempo todo a insultá-la e a pisar-lhe os calcanhares. quando era preciso cantar, nunca sabia a letra das canções, abria e fechava a boca como os actores do cinema mudo. os colegas perceberam e denunciaram-na. desde a juventude que tinha horror aos desfiles.
Franz estudara em Paris e, como era excepcionalmente dotado, já aos vinte anos tinha a sua carreira científica assegurada. a partir dessa altura, sempre soube que havia de passar a vida fechado entre as paredes de um gabinete universitário, de algumas bibliotecas públicas e de dois ou três anfiteatros; só de pensar nisso ficava abafado. dava-lhe vontade de sair dessa sua vida como nos dá vontade de sair de casa para ir à rua tomar ar.
ainda morava em Paris e ia de bom grado às manifestações. fazia-lhe bem ir comemorar qualquer coisa, reivindicar qualquer coisa, protestar contra qualquer coisa, não ficar sozinho, ir para a rua para o meio de outras pessoas. as manifestações que percorriam o Boulevard Saint-German ou iam da République à Bastilha fascinavam-no. a multidão em marcha, gritando ritmicamente os seus slogans, era para ele a imagem da Europa e da sua história. a Europa é uma Grande Marcha. uma Marcha de revolução em revolução, de combate em combate, sempre cada vez mais para a frente.
posso talvez dizê-lo de outra maneira: para Franz, a vida no meio dos livros era uma vida irreal. aspirava à real, ao contacto com outros homens e outras mulheres a marcharem lado a lado com ele, aspirava ao seu clamor. não se dava conta de que aquilo que julgava irreal (o seu trabalho no isolamento das bibliotecas) era a sua vida real, enquanto as manifestações que tomava pela realidade não passavam de um espectáculo teatral, de uma dança, de uma festa, ou, por outras palavras, de um sonho.
enquanto estudante, Sabina morava numa residência universitária. no 1º de Maio, eram todos obrigados a estar de madrugada nos pontos de concentração. para que ninguém pudesse faltar, alguns estudantes, militantes remunerados, iam verificar se a residência tinha ficado completamente vazia. Sabina escondia-se na casa de banho e só voltava para o quarto muito tempo depois de se terem ido todos embora. reinava então um silêncio como nunca conhecera em dias da sua vida. muito ao longe, ouvia-se a música de uma marcha. era como estar escondida dentro de uma concha e ouvir ao longe a ressaca de um universo hostil.
dois anos depois de ter deixado a Boémia, encontrava-se por mero acaso em Paris no dia do aniversário da invasão russa. havia uma manifestação de protesto a que não pôde deixar de ir. jovens franceses de punho erguido berravam palavras de ordem contra o imperialismo soviético. eram palavras de ordem que lhe agradavam, mas constatou com surpresa que era incapaz de as gritar em uníssono com os outros. só conseguiu aguentar a manifestação durante alguns minutos.
contou esta experiência a uns amigos franceses. espantados, estes perguntaram-lhe: «mas então tu não queres lutar contra a ocupação do teu país?» o que tinha vontade de lhes dizer era que o comunismo, o fascismo, todas as ocupações e todas as invasões ocultam o mesmo mal fundamental e universal; para ela, a imagem desse mal eram as manifestações com gente a desfilar de braço erguido e a gritar em uníssono as mesmas sílabas. mas sabia que não podia explicar isso aos seus amigos. sentiu-se aborrecida e preferiu passar a outro assunto.

Milan Kundera, A Insustentável Leveza do Ser

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