terça-feira, 15 de abril de 2008

por Catarina... e não só!

carta a Galante Garrone

caro Galante Garrone, parece-me retórico que eu lhe declarasse que foi apenas graças a uma pessoa como o senhor, e àqueles como o senhor, que uma pessoa como eu, nascida em 1943, numa Itália bárbara, infame e invadida por bárbaros igualmente infames, aos quais se havia mortalmente abraçada, tenha podido viver até à minha idade num país com uma Constituição democrática, ainda que assolada por tragédias e fortes conflitos sociais, mas substancialmente livre. assim como seria supérfluo declarar-lhe o meu sincero e maturado consentimento quando se recorda a expressão de um juramento à República não pode apagar as enormíssimas responsabilidades históricas da família real que nos calhou em sorte. responsabilidades que significam vinte anos de ditadura fascista, as calamidades da guerra, os milhões de mortos, os judeus italianos enviados para os campos de extermínio graças à adorável assinatura das abomináveis leis raciais de um rei com uma única vocação: a numismática. assim como não poderia não estar de acordo consigo nas inegáveis atribuições de culpas que se seguiram às insensatas declarações desta família atroz, com um comportamento infame, depois de ter lançado a Itália no abismo, fugiu para Pescara, deixando o seu povo entregue a asquerosos sanguinários. nenhum Savóia, naquele momento, fez pressão para reentrar em Itália. e a Itália de então era naturalmente a sua Itália, caro Galante Garrone, aquela das montanhas do vale de Ossola, dos montes de Sarzana, mas também daqueles que eram torturados na via Tasso o na Fortezza de Florença: aqueles que haviam percebido com toda a clareza a diferença entre civilidade e barbárie, e escolheram a civilidade. Posso perceber a sua profunda amargura ao constatar como em nossa casa, em poucos anos, a fronteira entre o certo e o ímpio se esfumou. ouvir da parte de altos responsáveis do Estado, daquele Estado democrático e republicano que o senhor ajudou a construir, que a escolha que vocês fizeram equivale àquela que fizeram os repubblichini [republicanozinhos], porque também eles eram guiados pela sua própria fé, deve ser revoltante.
hoje os assassinos são ilibados por pessoas que, em vez de utilizarem uma divisa castanha, que seriam constringidos a utilizar se não tivessem existido pessoas como o senhor, podem utilizar e vestir o que bem entenderem, como é devido a homens livres. e é igualmente revoltante, até para mim que não vivi esses tempos, mas que os conheço, ouvir os perturbadores [azzeccagarbugli / pettifogger] da história, que definem a guerra de Resistência, que vocês fizeram para sorte deles e nossa, um acontecimento vulgar. parece-me verdadeiramente eloquente que estes esforçados historiadores fechados em arquivos platónicos à procura de ratos mortos para ressuscitar, não tenham comentado o acontecimento. e, acima de tudo, dado que vivem da divulgação deste tipo de historieta, parece-me surpreendente que não tenham pedido ao Estado italiano que reclamasse aos Savóia a restituição do arquivo histórico que a família roubou e de que nunca mais se teve notícia. pergunto-me: de que forma vêem a histórias os nossos bravos "revisores"? através das canções de época? numa entrevista o Galante Garrone diz: «não podem querer que eu dê o meu aval à reentrada em Itália de uma família que ofendeu e feriu a nação e que é co-responsável pela morte de tantas pessoas que me eram queridas. não nos podem pedir que digamos sim a esta reentrada. pelo contrário, façamos uma proposta: deixem-nos morrer sem sofrer esta afronta e depois falem connosco outra vez. não é preciso esperar muito, daqui a dois meses farei 91 anos». a sua proposta suscita-me uma outra que, à primeira vista, poderia parecer paradoxal: caro Galante Garrone, por cortesia, seria desagradável para si que também eu atinja a sua idade? o tempo que nos separa não é assim tanto, se os deuses fizerem um pequeno esforço para atenderem aos nossos pedidos: neste século que agora mesmo acabou, já assistimos a coisas bem mais mirabolantes que uma pequena extensão temporal. é um pedido que lhe faço, e que faço evidentemente a mim também. Por tudo o resto o saudarei, como agora o saúdo, com afectuoso respeito e com gratidão por ter estado connosco então, e estar connosco hoje.


Antonio Tabucchi
L'Oca al Passo:
Notizie dal buio che stiamo attraversando


nota: nascido em 1909 em Vercelli, Alessandro Galante Garrone foi magistrado e historiador, bem como um protagonista da Resistência e um nome fundamental das batalhas ideológicas anti-fascistas. o artigo de Tabucchi foi publicado no Corrière della Sera, a 17 de julho de 2000. Galante Garrone morreu em outubro de 2003, em Turim depois de ter assistido ao regresso da família Savóia a Itália, regresso permitido pela Lei Constitucional de Outubro de 2002. graças ao "pequeno esforço dos deuses" já não teve de assistir à exigência por parte dos Savóia de 260 milhões de euros ao Estado italiano por 54 anos de exílio, que consideram injusto.

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