sexta-feira, 13 de abril de 2012

sobre a vergonha

habituei-me, todas as manhãs, a ouvir o Fernando Alves. não falho um programa, uma crónica, uma aula. fico sempre suspenso durante aqueles 3 ou 4 minutos, sem saber de mais nada.

esta é das mais bonitas - daquela beleza cruel, que põe a nu toda a realidade que preferimos fingir desconhecer, aquela beleza das palavras que servem para despertar para a dureza dos factos, aqueles factos que dizem que 23% da população espanhola não tem emprego. são os novos pobres, aquela expressão de contraponto, aquela expressão que cunha toda uma nova realidade de pessoas que, repentinamente, entram na triste espiral da pobreza miserável.

Fernando Alves manda calar Sarkozy, como ainda precisam de fazer os franceses.

Alejandro Toledo é um bem sucedido criativo de uma agência espanhola de publicidade. Há dias, caminhava em Madrid quando viu um antigo companheiro de profissão. Cumprimentaram-se e ele percebeu que o outro ia buscar comida a uma instituição de solidariedade.
Estou a contar-vos isto que li num jornal espanhol e não me sai da cabeça a frase de campanha de Sarkozy pedindo que votem nele para evitar uma crise como a da Espanha. E Mario Monti repetindo a cantilena. E a justa cólera dos espanhóis, Rajoy pedindo prudência nas declarações. Rajoy prudente, engolindo a cólera, engolindo a vontade de desatar o latim.
Mas Toledo percebeu que o outro, ainda ontem, tal como ele, um publicitário bem sucedido, ia agora à sopa dos pobres. Viu que o outro entrou num refeitório social e saiu com a sua ração de comida. Por dentro, a dignidade amarfanhada. Por fora, a roupa cuidada, disfarçando a condição de novo pobre.
Pode acontecer contigo, comigo. Já amanhã.
Alejandro Toledo ficou muito impressionado, a tal ponto que decidiu fazer um spot televisivo para a Caritas, chamando a atenção para a importância do trabalho humanitário. O resultado foi um filme comovente. Teria custado 40 mil euros. Mas todos os que nele participaram o fizeram gratuitamente. O homem que representa o novo pobre de Madrid é um malabarista que Toledo encontrou na rua. A menina que faz de sua filha é a filha de Toledo, o autor da campanha.
...
A primeira cena mostra-nos uma rua movimentada, fim de dia. A cidade já iluminada, reflexos de luzes nos estabelecimentos. Um homem, ainda jovem, caminha com uma menina. Agora ela pára. Encosta a cara ao vidro da montra. Tem um gorro roxo, uma mochila. Não larga um urso de peluche que aperta contra o peito.
O homem puxa uma enorme mala de viagem com rodas. Há uma loja de frutas. Atravessam, agora, um centro comercial. A menina chora junto a uma das montras. Depois senta-se no passeio. O pai incita-a a que prossiga. Estugam o passo, puxando a grande mala. O rosto do homem cruza-se com o de uma deusa da publicidade, num cartaz. Escureceu. É a menina que puxa agora a grande mala, como se fosse um cão pela trela. A casa pela trela. Há grupos de sem abrigo estendendo os seus cartões. O homem e a menina hão-de fazer o mesmo, adiante.
Agora amanheceu. Caminham de novo pelas ruas, entram na casa onde outros esperam não se sabe o quê. Podia ser uma sala de espera de um hospital. Sentam-se, o homem coloca uns sacos de plástico na cadeira ao lado. A menina não larga o urso de peluche. A fila começa a mover-se. Mulheres de bata branca estendem aos da fila embalagens com alimentos.
Saem para a rua. Agora estão sentados num banco de jardim. O homem abre a embalagem. É sopa, ainda fumegante. Ele dá sopa à menina. Talvez conte uma história enquanto leva a colher de sopa à boca da filha. Há um homem que toca acordeon. O homem e a filha sorriem. Abraçam-se. A menina corre para um escorrega.
...
Cala-te, Sarkozy. Um pouco de pudor. Verguenza.

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