sexta-feira, 12 de junho de 2009

coisas... aqui ao lado... para não julgar...

um dia na vida de drazen erdemovic

já passava das nove da manhã quando drazen erdemovic e a sua unidade chegaram à quinta colectiva de Branjevo. não tinham sido informados do objectivo da missão. o comandante, brano gojkovic, estivera pouco falador durante a viagem de autocarro desde a base, em Vlasenica; nem sequer dissera aos seus homens onde iam. a situação não agradou a drazen. normalmente, o 10º destacamento de sabotagem das forças armadas da república srpska tinha missões bem definidas, de reconhecimento ou minagem do território inimigo, e era sempre informado delas com bastante antecedência. mas esta era diferente. fosse qual fosse o seu objectivo, era secreta. a única coisa que drazen sabia é que traziam com eles muitas munições, quer para pistolas quer para armas automáticas. a viagem não foi longa e, quando saíram do autocarro, viram que se encontravam perto de uma quinta. tratava-se de uma suinicultura, mas parecia deserta; não se viam animais nem pessoas, à excepção de um vigia solitário. no pátio erguia-se um imponente carvalho e drazen sentou-se à sua sombra, com outros companheiros. (…)
agora, deitado no chão daquela quinta de Branjevo, sentiu que a terra vibrava ligeiramente. era como daquela vez que tinha encostado uma orelha a um carril e conseguira ouvir o comboio a aproximar-se antes de ter aparecido por detrás de uma colina próxima. drazen levantou-se e olhou à sua volta. os outros não tinham dado por nada, mas por pouco tempo. vinha lá uma camioneta. era um veículo bastante velho, uma daquelas camionetas de carreira entre aldeias, quase sempre avariadas. drazen viu o nome "centrotrans" pintado em grandes letras na carroçaria e alguns soldados sentados nos lugares da frente. a camioneta deteve-se junto do edifício principal da quinta, a uns quinze metros deles. o comandante disse umas palavras ao condutor, enquanto dois soldados abriam a porta traseira, da qual emergiu um homem. drazen recordá-lo-á para sempre, pois nesse instante compreendeu qual era a missão do seu destacamento e sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha. o homem era alto e muito magro. tinha bigode, mas drazen não conseguiu perceber que idade teria, pois estava vendado com um trapo sujo. vestia uma camisola azulada empapada em suor, umas calças azuis com riscas brancas de lado e calçava sapatilhas. vinha com as mãos atadas atrás das costas. o homem apeou-se da camioneta e deu alguns passos tacteantes; seguiram-se-lhe outros, igualmente vendados. um soldado conduziu-os a um campo próximo.
o comandante reuniu os seus homens e informou-os de que iriam chegar mais camionetas com civis de Srebrenica - ou seja, muçulmanos que se haviam rendido às forças da república srpska, tendo sido feitos prisioneiros. "vão ser executados pela nossa unidade", acrescentou. drazen e os seus camaradas de armas ficaram subitamente a saber que o seu destacamento se iria converter num pelotão de execução. drazen ficou aflito. nunca tinham recebido uma missão semelhante, mas ninguém disse palavra. só um deles, pero, parecia ansioso por começar, mas drazen reparou que ele bebia grandes tragos de uma garrafa de aguardente. olhou para os prisioneiros que estavam de pé, de costas voltadas para os soldados. um deles virou ligeiramente a cabeça na sua direcção, como se estivesse à espera de alguma coisa. quereria algo deles? drazen sentiu-se fortemente nauseado e pensou que ia vomitar.
não, não o faria! não podia matar outros homens assim, à queima roupa. as mãos tremiam-lhe quando se aproximou do comandante. "não quero fazer isto", disse. brano gojkovic virou-se para drazen, como se não tivesse ouvido bem. "o quê?" drazen conhecia o estratagema: gojkovic queria que ele repetisse alto e bom som o que dissera, para que toda a gente ouvisse e pudesse testemunhar o que quer que acontecesse a seguir. drazen olhou para os companheiros: "camaradas, eu não quero fazer isto. vocês são normais? sabem o que estão a fazer?" ,perguntou, embora com menos firmeza, sentindo a coragem a desvanecer-se rapidamente ao ver que os outros evitavam cuidadosamente o seu olhar. pero riu-se-lhe na cara. drazen pensou de repente que não ouvira um único pássaro cantar naquele dia. gojkovic encarou-o sem vacilar; a sua expressão era séria. "erdemovic", disse, "se não quer fazê-lo, vá até ali e junte-se aos prisioneiros para que possamos matá-lo também. dê-me a sua metralhadora!"
drazen deve ter percebido imediatamente que o oficial falava a sério, mas ficou desconcertado; não antecipara aquela reacção. por instantes imaginara poder sair-se daquela situação com uma simples recusa. mas de que estava ele à espera? lembrou-se de ouvir falar de um caso de desobediência anterior, na qual um soldado fora executado por ordem do tenente-coronel pelemis, e percebeu que era demasiado tarde para dizer não. já o deveria ter dito há muito tempo. o coração batia-lhe com tanta força, que não conseguia ouvir mais nada. durante um minuto, ou talvez menos, ficou pregado ao chão, com a kalashnikov nas mãos. por um instante, pensou em correr para um bosque, mas viu o rosto da sua mulher diante de si e sentiu-se impotente. podiam vingar-se nela e no bebé quando quisessem. ele era responsável por três vidas. tratava-se de uma desculpa, sim; a verdade é que demonstrara ser um cobarde, e sabia-o, mas poderia ter feito outra coisa? gojkovic não hesitaria em mandá-lo matar e pero teria cumprido a ordem de bom grado, embora drazen não percebesse o que tinha ele contra si. talvez o facto de não ser cem por cento sérvio, o que tornava ainda mais aconselhável levar a ameaça de gojkovic a sério.
o comandante já não olhava para ele, como se a sua decisão lhe fosse indiferente. ordenou aos soldados que se posicionassem atrás dos prisioneiros e a estes que se ajoelhassem. drazen tomou o seu lugar numa extremidade do pelotão. o coração continuava a bater-lhe furiosamente quando apontou a arma a um homem de idade cujo rosto, felizmente, não vira antes. rápida e febrilmente, pesou as alternativas. claro que podia fazer pontaria entre dois prisioneiros, mas aquele que lhe cabia iria morrer de qualquer forma. seria como morrer duas vezes. além disso, aquele pelotão de execução compunha-se apenas de uma dúzia de soldados, pelo que, se não apontasse devidamente, seria logo detectado. o comandante perceberia e ele seria executado. não, tinha de apontar ao prisioneiro. ouviu então a ordem, "disparar!", e o homem desapareceu do seu campo de visão. lembrava-se apenas de que a sua primeira vítima vestia uma camizeta cinzenta. drazen fechou os olhos e procurou acalmar-se, mas já outro grupo de prisioneiros estava diante dele. um deles gritou, "vão-se foder, seus...", mas a ordem de disparar foi dada antes que tivesse tempo de acabar a frase. depois da primeira vez, drazen disparou várias outras a intervalos de minutos, sem pensar muito no que estava a fazer. a única coisa que fazia conscientemente era tentar apontar a idosos e não a homens novos. parecia-lhe um desperdício menor. em pouco tempo, a camioneta ficou vazia.
quando olhou para o relógio, drazen sentiu-se chocado: tinham levado apenas um quarto de hora a executar cerca de sessenta pessoas. mas chegara entretanto uma segunda camioneta. os seus ocupantes não podiam ver o que os esperava, pois também estavam vendados. drazen sentiu-se aliviado, pensando que, afinal, se tratava de um acto de misericórdia para com aqueles pobres homens. contudo, não tardaram a chegar camionetas transportando homens sem vendas; nem sequer tinham as mãos amarradas. (...) drazen nunca vira algo semelhante: homens marchando ordeiramente para o local onde seriam executados, como animais num matadouro.
(...) já devia passar do meio-dia, mas os soldados não tinham tempo para descansar. a princípio, de meia em meia hora, drazen sentava-se debaixo da árvore e fumava um cigarro. era uma espécie de fuga, uma pausa. depois, deixou de lhe apetecer fumar. os seus movimentos tornaram-se cada vez mais mecânicos: apontava à cabeça de um homem e disparava, e ainda não tinha tido tempo para limpar o suor da testa quando já outro se ajoelhava à sua frente. era preferível assim; se fizesse um intervalo, aperceber-se-ia do cheiro desagradável que emanava dos corpos.
(...) o sol ainda ia alto e o fedor era insuportável. drazen tinha de sair daquele lugar dantesco. teve novamente vontade de saltar para dentro de água ou, pelo menos, de tomar um duche, para se libertar do cheiro a morte. se ao menos pudesse lavar as mãos... examinou-as cuidadosamente. não viu sangue, apenas uma bolha no indicador direito. uma bolha redonda, rosada. que estranho, pensou drazen, ficar com uma bolha por matar pessoas. calculou que devia ter puxado o gatilho umas setenta vezes. matara umas setenta pessoas, talvez, e tinha ficado com uma bolha. de repente, achou a situação tão hilariante, que destaou a rir histericamente.


Slavenka Drakulic, Não faziam mal a uma mosca:
como os homens banais podem ser criminosos de guerra

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