domingo, 13 de abril de 2008

aqueles por quem nos devemos bater!

[…] e agora como estás, Alekos?

menos bem do que pareço. a minha saúde não está muito boa […] todas aquelas greves de fome, por exemplo, me debilitaram muito. dirás: «mas porque é que fizeste essas greves da fome?» porque durante os interrogatórios a greve da fome é um meio de os fazer parar. mostras-lhes que nada lhes dás porque tens coragem de recusar tudo. vou-me explicar melhor. se recusas comer e os agrides, eles enervam-se, e o facto de se enervarem não lhes permite aplicar uma forma sistemática de interrogatório. durante as torturas, por exemplo, se o torturado tem uma atitude provocatória e agressiva, o interrogatório sistemático transforma-se numa luta pessoal do torturado consigo mesmo. compreendes? quero dizer que, com a greve da fome, o corpo enfraquece e isto não permite a continuação do interrogatório, porque é inútil interrogar ou torturar alguém que perde o conhecimento. Estas condições efectivam-se após três ou quatro dias sem comida nem água, principalmente quando se perde sangue pelas feridas infligidas pelas torturas. assim, são obrigados a transferir-te para o hospital e… oh, as minhas recordações do hospital são, também, dolorosas. […]

e depois?

depois, do hospital, mandavam-me para a casa da tortura e recomeçavam. então fazia de novo a greve de fome; mais uma vez os provocava e me mostrava agressivo; mais uma vez lhes mostrava o meu desprezo. deste modo, o seu sistema fracassava de novo. e de novo eram obrigados a levar-me para o hospital […] numa palavra, era-me impossível não recorrer à greve da fome. era uma arma indispensável.

durante os interrogatórios, compreendo… mas depois, Alekos, na prisão?

na prisão não tinha um processo mais eficaz para exprimir o meu desgosto, o meu desprezo, e para lhes demonstrar que não podiam dominar-me, nem mesmo sendo um preso. ao rebelar-me pela greve da fome tinha a sensação de não estar só e que oferecia qualquer coisa à causa da greve. pensava que se tivesse uma atitude firme, corajosa, os soldados e os guardas e os próprios oficiais compreenderiam que eu estava ali a representar um povo decidido a vencer. […] fiz muitas [greves]. e, apesar disso, nunca desistiram de me espancar. nunca. levei tantos pontapés naquela cela! as costelas que me partiram, quando me batiam com matracas de ferro, mal estão coladas.

[…]

bateram-me principalmente na região dos pulmões e na dos rins. por isso, durante duas semanas, cuspi sangue e urinei sangue. portanto, como queres que me sinta bem, agora?! de resto, o facto de urinar sangue deriva ainda de outra coisa que me fizeram durante o interrogatóriio.

não te perguntarei o quê, Alekos.

porquê? é uma coisa que contei no processo, e da qual informei a Cruz Vermelha Internacional. Fez-me babalis, um dos meus carrascos. enquanto jazia nu atado àquela cama de ferro, enfiou-me na uretra um arame. uma espécie de agulha. depois, enquanto os outros me diziam obscenidades, com o isqueiro aqueciam o pedaço de arame que ficara de fora. uma coisa tremenda. dizes: «mas não te fizeram o electrochoque.» não, não mo fizeram. mas fizeram-me aquilo que te disse e, quando se fala de torturas qual será a pior? estar dez meses algemado, digo dez meses, dia e noite, não é uma tortura? dez meses, de dia e de noite. só a partir do nono mês me libertaram os pulsos, durante algumas horas, duas ou três horas de manhã, após a insistência do médico da prisão. as minhas mãos estavam inchadas, os pulsos em carne viva e em muitos pontos tinham feridas purulentas… […] se fizesse a lista das torturas… olha estas três cicatrizes ao pé do coração, fizeram-mas no dia em que me bastonavam o pé esquerdo, o que sucedia correntemente. batem na planta dos pés até que a dor nos chega ao cérebro e desmaiamos. mas eu suportava esta dor bastante bem. porém, naquele dia, babalis bateu com toda a força e rompeu-me o pé esquerdo. cinco minutos depois chegou constantino papadopoulos, o irmão de papadopoulos, que me apontou a pistola à testa e gritou: «dou-te um tiro, dou-te um tiro!», e batia-me. enquanto me batia, theofiloyannakos golpeava-me a zona do coração com um corta papel de ponta afiada. «enfio-to no coração, enfio-to no coração!» é por isso que tenho estas três cicatrizes.

e as cicatrizes nos pulsos?

oh, estas fizeram-me quando fingia que desmaiava. nada de grave. cortaram-me superficialmente. de resto, sabes: cicatrizes tenho-as em todo o corpo. de vez em quando descubro uma e digo para mim: quando é que te fizeram esta? à terceira semana de torturas deixei de fazer caso. sentia o sangue correr por um lado, a carne a abrir-se por outro e pensava: «resiste.» começavam as torturas fustigando-me com uma corda de metal, era theofiloyannakos quem me fustigava, ou então prendiam-me ao tecto, pelos pulsos, e deixavam-me assim durante horas. é uma coisa dura, porque a parte superior do corpo, após algum tempo, fica como que paralisada. quero dizer: deixamos de sentir os braços e os ombros, deixamos de poder respirar, não podemos gritar, não podemos reagir de nenhuma forma e… eles sabiam tudo isto, naturalmente, e quando chegava a tal ponto bastonavam-me nos rins. sabes ao que é que nunca consegui habituar-me? à sufocação. era theofiloyannakos que ma fazia, tapando-me com ambas as mãos o nariz e a boca. oh, era o pior de tudo, de tudo! tapava-me o nariz e a boca durante um minuto, olhando o relógio, e só me deixava respirar novamente quando me tornava violáceo. deixou de fazer com as mãos quando consegui morder-lhe. uma dentada que quase ficou sem um dedo. mas depois começou a fazê-lo com um cobertor e… uma outra coisa que suportava a custo eram os insultos. nunca me torturavam em silêncio, nunca. gritavam, gritavam… com berros que não eram berros mas obscenidades… e os cigarros apagados nos testículos. ouve, mas porque é que queres saber estas coisa? nem sequer é justo, não o fizeram só a mim. vai ao hospital militar 401, se te deixarem, e pede para ver o major Mustaklis. a ele, durante o interrogatório, fizeram-lhe o aloni. sabes o que é o aloni? é quando os torturadores se põem em círculo, depois atiram-te para o meio e batem-te todos ao mesmo tempo. a ele bateram-lhe na coluna vertebral e na nuca. ficou completamente paralisado. jaz na cama como um vegetal, e os médicos consideram-no «clinicamente morto».

queria perguntar-te uma coisa, Alekos. antes do que te sucedeu suportavas bem a dor física?

oh, não! não! a mais ligeira dor de dentes punha-me doido e não suportava a vista do sangue. sofria só por ver sofrer as pessoas, admirava com incredulidade as pessoas capazes de tolerar a dor física. o homem é realmente uma criatura extraordinária, um oceano de surpresas. é incrível como um homem pode mudar, e é maravilhoso como ele se pode revelar capaz de suportar o insuportável. […] se soubesses quantas vezes lhes bati também! se não estava atado à mesa de ferro, desatava a dar-lhes pontapés, mordidelas, pezadas. era utilíssimo, porque assim enraiveciam-se e batiam-me com mais força e eu desmaiava. estava sempre à espera de desmaiar, porque desmaiar é como dormir. depois eles recomeçavam, mas…

[…] e agora queria saber outra coisa, Alekos. Esta: depois de sofrer tanto, ainda és capaz de amar os homens?

amá-los, ainda?! amo-os ainda mais, queres tu dizer! mas como é que podes fazer uma tal pergunta? acreditas que eu posso identificar a humanidade com as feras da polícia militar grega? trata-se apenas de um punhado de homens! não te diz nada que, em todos estes anos, fossem sempre os mesmo? sempre os mesmos! ouve, os maus são uma minoria. e por cada mau que há existem dez mil bons, isto é, as suas vítimas. AQUELES POR QUEM NOS DEVEMOS BATER. […] OH, O HOMEM… […] O HOMEM NASCE PARA SER BOM, E É COM MAIS FREQUÊNCIA BOM QUE MAU.

Alexandre Panagoulis [Alekos] a Oriana Fallaci
entrevista com a história

nota: os nomes gregos em itálico são dos torturadores e dos altos responsáveis da ditadura dos coronéis. não merecem uma letra maiúscula porque não creio que se deva dar relevo ao nome daqueles que tão atrozes crimes cometeram. os seus nomes apenas devem ser pronunciados para não deixar cair no esquecimento o horror das suas acções.

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